5 de julho de 2015

Eu não estou louca, querido



“Você é louca” ouvi, depois de ter feito algo que, na minha cabeça, é completamente normal. Rotineiro até. Mas era algo que desafiava as noções de normalidade. Que eu fiz por decisão própria, sem pedir a aprovação de ninguém. E isso, como a gente sempre aprendeu, é loucura.

Vamos conversar sobre essa noção, aliás. Geralmente usada de forma ofensiva contra mulheres, a acusação de loucura é assustadoramente comum. “Você só pode ser louca de sair sozinha?” e “Mano, cê viu que louca aquela mina que tava tentando pegar meu bróder?” foram duas frases que eu ouvi na véspera de escrever esse texto. O estigma pode até evoluir para fica-louca-na-tpm, louca-dos-gatos, não-sei-porque-você-acha-que-tudo-é-machismo-sua-louca e derivados.

E é aí que quero chegar. Mulheres são sempre taxadas de loucas quando elas têm algum tipo de desvio da normalidade. Ou da noção de normalidade, por assim dizer. Mulheres, a partir do momento que recebem esse rótulo, não conseguem se livrar dele. E eu vejo três problemas fundamentalmente ligados ao machismo nisso aí:

Primeiramente, o estereótipo por si só. Eu, você e sua vizinha somos pessoas com diferentes traços de personalidade. Nós temos gostos, amores e desavenças individuais, certo? Nós temos nossas manias específicas e uma banda preferida. Contradições próprias, vícios, tiques, marcas de expressão. Ou seja, somos seres humanos complexos.

Talvez você seja taxada de louca por defender um ideal político, por gostar de viajar sozinha, por não querer ter filhos ou por fazer uma tatuagem. Só aquela louca ia fazer uma coisa dessas, afinal. O que ela tem na cabeça? Sempre soube que era um pouco sem noção. Eis aí, você, pessoa complexa, ser reduzida a “louca” por ter feito algo que desafia os padrões que você deveria seguir à risca. Você não é mais uma pessoa, um ser humano complexo, mas uma representação da loucura aos olhos alheios.

O segundo problema sério que eu vejo nisso é o gaslighting. Gaslighting, se você não sabe, “é uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade”. É isso que diz a Wikipédia, mas eu acho que todas nós conseguimos pensar em um momento de nossas vidas em que sofremos com isso.

Como eu disse acima, tem tudo a ver com desrespeitar as expectativas que são impostas sobre você. Um dia desses, por exemplo, fui chamada de louca em círculos conservadores por dizer que chamar a presidenta de vaca não era certo. A feminista louca e exagerada, que não tem noção da realidade, coitadinha. Minha percepção só podia estar errada, diziam.

De uma forma mais séria, podemos perceber que o gaslighting é uma ferramenta comum em relacionamentos (românticos ou não) abusivos. Mulheres costumam ser acusadas de estarem procurando problema onde não existe, de serem dramáticas, de “causarem” (ainda usamos o termo “causar”? Tenho a impressão que isso era um chavão da minha época de Ensino Médio), de exagerarem. Quem nunca ouviu um babaca qualquer dizer que a namorada dele é louca e ciumenta enquanto flerta com outras? Sem contar a tortura emocional que é para mulheres que têm longos relacionamentos abusivos em que os abusadores se utilizam do gaslighting para fazer com que elas desconfiem do próprio julgamento do que é certo ou errado.

Agora, o terceiro problema de caracterizar as mulheres como loucas: a invalidação do nosso estado mental. Deixe-me usar um exemplo pessoal aqui: tem dias que mal consigo levantar da cama e ter uma rotina normal por causa da ansiedade. Tem dias em que me sinto uma fraude, em que não consigo cumprir minhas obrigações, em que não consigo ficar em uma sala fechada por mais que algumas horas.

Assim como qualquer outra situação que desvie da normalidade, esse tipo de reação não é visto com bons olhos pela sociedade. Se eu (ou qualquer pessoa na mesma situação, por falar nisso) não consigo funcionar bem de vez em quando porque meu cérebro não colabora, eu sou aquela louca lá. Ao mesmo tempo, se eu tento falar sobre isso e me abrir, sou louca também.

Agora que mencionei esses pontos, não posso deixar de citar a representação que é feita das mulheres. Nas novelas, nos livros, nas comédias românticas, na música, onde quer que seja. Sempre tem a esposa ciumenta demais, a moça que faz sexo casual, a ex-namorada que não superou o término, a mulher que procura subir na carreira a todo custo, a namorada que pede pro cara fazer um favor bem na hora do jogo: clichês retratadas como loucas. E isso só normaliza a atitude na vida real.

Mas deixa eu te contar uma coisa: eu, você e sua vizinha somos pessoas inteiras. Nós temos nossos momentos de tristeza, alegria, crise, insegurança, esperança, revolta, frustração com o mundo, inspiração, criatividade. Nós temos nossos gostos pessoais, nossos critérios, nossos julgamentos, nossa ética, nossas vontades. Nós somos complexas e merecemos ser tratadas como tal.

E se alguém vier te dizer que você é louca, moça, o leviano é ele.

Publicado originalmente na Revista Pólen

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